Um novo Brasil
por Alexandra Lucas Coelho
Maria Aparecida da Silva Dias Carvalho segura a carteira azul contra o sol. É Inverno no bairro carioca da Gávea portanto dá para ficar ao sol à espera da fotografia. A carteira azul, assinada pelo empregador, prova que Aparecida trabalha como empregada doméstica. Esta novidade tem seis meses na vida dela e está a mudar o Brasil. Calcula-se que 52 milhões de brasileiros terão entrado na classe média desde 2003 até 2014: mais de cinco portugais em apenas 11 anos. E o importante desta nova classe média, aquilo que a torna sustentável, é a formalização do trabalho.
A Gávea tem o melhor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Rio de Janeiro. Esta casa é um duplex no topo do prédio. Os donos, ambos advogados, passam o dia fora. A babá Luciana acaba de sair para ir buscar a criança ao colégio, de onde a levará à natação. “Estou aqui há quatro anos, tomando conta dessa benção, essa criança que amo de paixão”, disse ela antes de partir. “Mas não trabalho feriado, não trabalho sábado e domingo.” Nesses dias entra a folguista para a substituir. “E vou embora todos os dias. Se você mora na casa não tem hora para deitar. Vai do empregado se impôr. Hoje a gente não tem medo de ficar desempregada. Faz uma entrevista, se não está a fim, se não gosta do salário, das condições, não fica.” Um discurso que há 15 anos seria difícil de ouvir na hierarquizada sociedade brasileira.
É quando Luciana sai que a casa fica por conta de Aparecida, pelo menos nos dias em que não vem a faxineira, como hoje. Há um terceiro empregado diário, o motorista, mas o lugar dele é lá fora. Esquema comum nas classes A e B do Rio de Janeiro: babá, empregada, motorista, faxineira. Menos comum era que os patrões assinassem a carteira de trabalho, o que implica pagar, além do salário, impostos e férias, como agora acontece com Aparecida.
A terra dela é Petrópolis, a Sintra dos cariocas onde D. Pedro II ergueu o seu palácio de Verão e hoje há uma periferia de favelas. “Eu trabalhava lá para uma professora que dizia que quando arrumasse um serviço melhor assinava minha carteira, mas acabou que os anos foram passando”, resume Aparecida, sentada no terraço. “Gosto muito dela e ela de mim, ficou uma coisa assim de amizade. Depois ela não pôde ficar mais comigo, deixou de ter condições. Aí, fiquei desempregada.”
Aos 43 anos, com três filhas em casa, uma delas grávida pela segunda vez, e nenhum marido há muito. Criou as filhas sozinha? “Eu e Deus.” Evangélica da igreja Obra de Restauração, uma das muitas que proliferaram no Brasil pré-nova classe média.
“Eu estava já com quatro meses de aluguel atrasado, aí uma amiga me falou desse trabalho no Rio. Me disse: ‘Eu tomo conta das tuas filhas, vai nem que seja dois meses.’ Minha intenção era essa, dois meses para acertar o aluguel. Mas acabou que eu gostei. Eles [os patrões] são óptimos. No primeiro mês as meninas ficaram meio chorosas, mas eu saio sexta para Petrópolis às duas da tarde e volto segunda de manhã.”
Quatro dias e meio de trabalho que contam bem por cinco, porque Aparecida trabalha de manhã à noite. “A faxineira faz o trabalho mais pesado, lavar, limpar vidros. Eu dou uma limpeza na casa, cozinho e passo. Vim para cozinhar.”
Recebe 1400 reais limpos, mais 270 para os bilhetes de autocarro. Somando, 1670 reais (662 euros), o que põe Aparecida oficialmente na nova classe média: contando com as três filhas que dependem dela, o rendimento per capita dá 417,5 reais e, segundo os mais recentes critérios do governo brasileiro, classe média é o grupo composto por famílias com rendimento per capita entre 291 e 1019 reais. No total, 54% da população.
“Em vista do que eu ganhava, que era o salário mínimo, é um bom salário.” Foi a proposta do dono da casa, para quem trabalho informal estava fora de questão. “Eu nem queria carteira porque achava que ia ficar só dois meses, mas ele exigiu tudo direitinho. Entrei a 5 de Janeiro e a 5 de Fevereiro já me entregou a carteira.”
Diferenças?
“Quando fiquei quatro meses parada tive de fazer uma cirurgia. Se eu tivesse carteira assinada o INSS [segurança social] cobria. Agora, se eu precisar de ficar em casa, sei que vou ficar lá segurada. E se eu morrer hoje sei que as minhas filhas vão receber um salário.”
As casas da Zona Sul carioca tendem a ter pelo menos um quarto de empregada. É aí que Aparecida dorme, com a calculável vantagem de não gastar dinheiro em alojamento e alimentação e a incalculável desvantagem de não estar na própria casa. “Para mim é normal, só sinto falta das minhas filhas. Mas o quarto é confortável, tem televisão, fico vendo até hora que eu quero. E o que tem de comida, todo o mundo come igual.”
Ainda assim, mal consegue poupar. “Só tiro uns 50 reais por mês. O resto é aluguel, as filhas, luz, água, Internet que as crianças têm que ter para fazer pesquisa para a escola.” Um computador para as três, dois telemóveis para as mais velhas, todos os electrodomésticos, mais alguns extras. “Prometi às minhas filhas que quando receber o 13º vamos para a região dos Lagos. Agora posso pagar as roupas que pediam e coisas de comer mais caras, iogurte, biscoito recheado, fazer um lanche na rua. Posso pagar curso de informática à do meio e quero colocar ela num curso de inglês.”
Nova classe média também é informação, comunicação, redes. E o subúrbio a rir da Zona Sul, parando o país como há muito não se via: a Avenida Brasil, principal entrada e saída do Rio, dá nome à actual novela das 21h, “filet mignon” da Globo, com a relação patroa-empregada no centro nervoso da trama.
“Não queria ter uma patroa igual àquela de jeito nenhum”, comenta Aparecida. Empregada vai deixando de baixar a cabeça. “Eu tinha amigas que tinham vergonha de trabalhar em casa de família. Mas hoje acho que todo o mundo fala até com um pouco de orgulho.”
O plano de Aparecida é ter uma casa que seja sua.
“A queda da desigualdade é a grande componente brasileira”, diz o economista Marcelo Neri, pesquisador da Fundação Getúlio Vargas e o mais reconhecido perito em classe média do país, autor de vários estudos sobre o assunto. “O crescimento do Brasil tem caído, mas a desigualdade segue em queda.”
E isso é que faz a diferença em relação aos restantes BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). “Nos outros, a desigualdade tem aumentado. O Brasil não cresce tanto quanto a China mas a desigualdade cai.”
Em 2011, a classe média brasileira estava com 105 milhões, mais 40 do que em 2003. Até 2014, mais 12 milhões vão juntar-se. “O principal símbolo dessa nova classe média não é o cartão de crédito, nem o carro, mas a carteira de trabalho, segurança para as pessoas, garantias que tornam esse grupo sustentável. E o crescimento da carteira de trabalho por sua vez foi impulsionado pela educação. É mais estrutural do que eu próprio acreditava quando fiz as pesquisas.”
Não se resume à caricatura do consumo, dos ecrãs LCD comprados a prestações no cartão de crédito. O índice do produtor — aquele que produz algo — “está crescendo mais 38% que o do consumo”. Em resumo: “A capacidade de consumo é mais consequência do que definição. O ponto é que esse consumidor veio para ficar porque está baseado no mercado de trabalho. Será um consumidor robusto no futuro. O Brasil está com um nível mínimo de desemprego.”
Representando 54% da população, e a crescer, esta classe média não é apenas um poder económico: “Pode decidir sozinha uma eleição.” E parece-se muito com a classe média mundial, diz Neri. “Não é americana, não é europeia, com dois carros e dois cachorros. Mas já tem dois filhos. A distribuição de renda brasileira é parecida com a do mundo. Na China ou na Índia, a nova classe média são pessoas que já tinham condições e melhoraram. No Brasil são pessoas que vieram de baixo.”
Como Aparecida da Silva. “A metade mais pobre do Brasil teve um crescimento 550% mais rápido que os 10% mais ricos”, explica o economista. “A desigualdade está no seu mínimo histórico.”
O Brasil é um país “de muita inércia, uma sociedade com pouca tendência a mudanças” e isso tem custos: “Como a gente acha que Deus é brasileiro, não poupa, não investe em educação.” Então, o que aconteceu “nos últimos 10, 12 anos” foi “um milagre social”, diz Neri. “Este crescimento tem qualidade. Para entender o Brasil, tem de separar a foto do filme. A foto ainda é muito ruim, com desigualdade, informalidade. Mas é muito menos ruim do que há 20 anos. E o brasileiro está feliz, optimista em relação ao futuro, o que é um traço cultural. Os dados comprovam isso.”
Por exemplo, o Índice de Felicidade Futura (ranking feito pela fundação a partir de dados do Gallup World Poll em 158 países), em que os inquiridos dão uma nota de 1 a 10 à sua vida daí a cinco anos. “O brasileiro dá 8,6. É a nota mais alta do mundo, entre 158 países, e já por quatro vezes. Aí, o Brasil é o país do futuro na cabeça no brasileiro. Não um ‘hard power’, mas um ‘soft power’. E no índice de felicidade futura é o 22º. Quando as pessoas saem de baixo, o nível de optimismo sobe muito.”
A novela “Avenida Brasil”, crê Marcelo Neri, mostra como essa nova classe média começou a ser objecto de atenção. “Não só ela está querendo se ver, como as elites não estão mais se vendo. A Rede Globo demorou, mas agora percebeu a mudança com toda a força e isso ajuda a propagar o processo. É uma coisa de grande importância, que representa a nova cena do Brasil.”
“Não quis fazer uma caricatura do subúrbio, ao contrário, quis debochar da Vieira Souto [marginal de Ipanema, morada de luxo]”, disse terça-feira ao “Globo” o autor da novela, João Emanuel Carneiro. “Os ricos hoje têm uma vida acomodada na riqueza” mas “o Lula e a Dilma esvaziaram essa visão positiva das elites”, e “o luxo já não enche os olhos visto na tela”. Além de que o dinheiro mudou de lugar e “a cultura está sucateada”. Ou seja: “Hoje, no Brasil, um encanador ou um comerciante ganham mais do que um professor universitário.”
Carneiro tem em cima dos ombros a pressão diária de milhões suspensos da batalha entre Carminha, a patroa suburbana, e Nina, a empregada vingativa. O PÚBLICO enviou-lhe um mail, sendo que, segundo o “Globo”, o roteirista está recluso num apartamento a escrever das três da tarde às três da manhã e não respondeu até à hora de fecho desta edição.
Mas um ano antes da estreia mergulhou no subúrbio de facto, nesses bairros de onde vem e onde continua a classe C, aquela que todos os mercados agora querem conquistar: companhias áreas e agentes de turismo, marcas de roupa e televisões a cabo.
“O João foi comigo várias vezes”, conta Anna Lee, a pesquisadora de “Avenida Brasil” a quem a equipa de roteiristas pode perguntar tudo diariamente. “Ele já tinha lugares e ideias na cabeça mas fez questão de ir. Fomos ver as casas, um clube de segunda divisão, o Shopping de Bangu, o Viaduto de Madureira.”
Bairro de escolas de samba históricas como a Portela ou a Império Serrano, Madureira aloja há 20 anos um baile charme, ou seja, uma festa de música negra para dançar. A novela inspirou-se nela e agora os queques da Zona Sul querem ir lá para o viaduto.
A mudança social também passa por essa inversão. Em vez da classe C vir para a Zona Sul, a Zona Sul vai para os bairros da classe C, ex-D/E.
“O interessante que a gente percebeu nas lojas é que é um lugar emergente mesmo”, lembra Anna Lee. “Há um outro dinheiro circulando lá, joalharias nos shoppings. As lojas da Zona Sul estão lá com outra estética. Eles têm as coisas que a gente tem mas da forma deles.”
O autor de “Avenida Brasil” tem mais cinco roteiristas a escrever com ele. Um deles é Alessandro Marson, 43 anos, que a repórter foi encontrar num apartamento de Copacabana, também imerso na pressão dos capítulos diários. Paulista do interior, filho de uma professora e de um dono de supermercado, acostumado aos subúrbios de Campinas, Alessandro tinha escrito cenas suburbanas numa outra novela e captou a atenção de João Emanuel Carneiro. “O João perguntou: ‘Quem está escrevendo essa parte suburbana?’ Depois me disse: ‘Gosto e vou precisar disso na minha novela.’”
Alessandro foi ler o que João já tinha escrito. “Achei que a grande inovação é que a mocinha [a empregada doméstica Nina] agia como vilã.” Não que seja necessariamente vilã, mas actuava como tal. “E a outra novidade é que tinha um núcleo da Zona Sul exclusivamente de comédia. Minha praia de escrita é a comédia, e normalmente os núcleos cómicos da novela acabam sendo suburbanos. ‘Avenida Brasil’ inverteu isso. Os ricos, aqui, moram no subúrbio, a tragédia está no subúrbio, e a comédia na Zona Sul, um homem com três mulheres, entra por uma porta, sai por outra, comédia em estado puro.”
São quase nove da noite, daqui a pouco vai para o ar o capítulo 112 e, como sempre, Alessandro vai sentar-se de iPad em frente à televisão. “Fico assistindo com o Twitter. As pessoas ficam comentando e fazendo perguntas. É uma forma muito rápida e quente de ver o que gostam ou não. Todo o mundo que fala da novela usa o tag “oioioi” mais número do capítulo. Está no topo todos os dias, é o assunto mais comentado do Brasil de segunda a sábado, e muitas vezes os outros tags mais comentados são nomes de personagens da novela.”
“Avenida Brasil” tornou-se um vício do novo Brasil, incluindo a elite blasé que nunca mais vira novela e agora adia jantares, teatros, concertos para ver a classe C ser protagonista.
“Os evangélicos pentecostais cresceram muito nas décadas perdidas da economia brasileira”, recorda o economista Marcelo Neri. Isso, entre os anos 80 e 90. Agora, “os católicos estão perdendo, mas crescem os protestantes tradicionais, os baptistas, os budistas, os espíritas”. Ou seja, “aumentou a diversidade e os pentecostais crescem menos, o que está associado à prosperidade”.
E esta nova classe média está a entrar no universo cultural, não apenas como espectadora, mas também como produtora ou agente. “Você está vendo gente pela primeira vez no teatro ou fazendo uma viagem de avião, e a primeira vez é muito importante”, comenta Neri. “Mas é uma classe que não está acostumada a ler. Isso gera preconceito da classe alta. Tal como existe um conflito de classes no aeroporto, porque a elite sempre teve os aeroportos vazios para ela. A nova classe média incomoda. Culturalmente tem muitas coisas acontecendo, mas não é a cultura tradicional. Está na periferia das cidades.”
Central do Brasil, a grande estação de comboios carioca que estabelece a ligação com as periferias. O comboio das 11h12 para Santa Cruz arranca para quase hora e meia de viagem. Santa Cruz é o extremo da Zona Oeste onde a cidade acaba, ou seja um dos confins do Rio de Janeiro. Para quem vem de carro, o fim da Avenida Brasil. Tantas caras mulatas como brancas na carruagem. O passageiro em frente lê o jornal “Extra” mas o passageiro ao lado lê o livro “Política Externa e Poder Militar no Brasil”. Os clichés não sobrevivem a uma viagem de comboio.
No fim da linha, entre centenas de pessoas a subir para a passagem aérea ou a sair para rua, aparece Alexandre Damascena, actor, encenador, um filho do bairro que aos 39 anos continua a morar no bairro e esta manhã será o anfitrião da reportagem.
“Estamos passando por mudanças muito grandes por causa do BRT, está vendo?” Aponta uma estação de autocarro sofisticada, do outro lado da rua. Os BRT são os autocarros rápidos, com vias exclusivas, que estão a ligar vários pontos da Zona Oeste, e ligarão a Barra da Tijuca ao aeroporto, pensando já nos Jogos Olímpicos de 2016. Enquanto falamos aparece um autocarro azul articulado, novinho em folha, a caminho da Barra.
“Uma viagem que durava uma hora e meia agora passa para 45 minutos”, diz Alexandre. “Tem um impacto muito grande na vida dos moradores.” Estamos em plena zona controlada pelas milícias, ex-polícias que funcionam como os gangues do tráfico, mas em vez de se dedicarem à droga controlam comércio e redes de transporte, como as carrinhas a que os cariocas chamam “vans”, muitas vezes o único meio de chegar a um lugar. “Onde tem dificuldade de transporte sempre acaba abrindo espaço para aparecer vans, que cobram sete reais até à Barra, enquanto este ônibus custa 2,75.”
Caminhamos para o velho carro de Alexandre, a bordo do qual iremos a sua casa, ainda distante. Ele continua a morar com os pais. “A minha mãe fala muito sobre a novela, as vizinhas falam, todo o mundo gosta muito. Essa empregada era a boazinha e agora está tão má quanto a outra [a patroa]. E muita coisa que a gente já viu mas não estava na Globo. Sai do estereótipo do bonzinho. O povo também é complexo. Quem mora na periferia é muito estereotipado nas novelas. Então quando aparece um personagem assim as pessoas pensam: ‘Eu vou ter de me enfrentar.’”
O carro está numa pracinha verde onde há uns anos nasceu a Faculdade Machado de Assis. “Universidade aqui é um fenómeno muito novo. Agora temos três privadas, mas não há nenhuma pública e as privadas estão lotadíssimas. As pessoas estão querendo estudar.”
Quando Alexandre tinha 14 anos e começou a fazer teatro nesta praça não havia nem lugar para ensaiar. “A gente é vizinha de Campo Grande que, tem muito comércio. Mas Santa Cruz tem uma relação com a história do Brasil. O quartel foi casa de D. Pedro II. Era a antiga Fazenda Santa Cruz.”
Lá iremos. Entretanto, basta olhar o outro lado da praça para achar vestígios do passado senhorial: um casarão meio em ruínas ainda habitado. Alexandre cresceu a sonhar que aquilo seria um centro cultural. Ainda não. E quando fundou a sua companhia, que é a Cia do Invisível, fundou também uma novidade na região: fazer as peças em casa das pessoas. “Porque aqui não tem teatro. O projecto chama-se Café com Machado. A gente adaptou ‘O Caso da Vara’, do Machado de Assis.” E incluem um lanche na representação, levam bolinhos, café para a casa anfitriã.
Depois de estudar teatro, Alexandre avançou para a literatura, está a fazer mestrado na UFRJ, a universidade federal do Rio de Janeiro, e gostava de fazer um mestrado em Portugal. Pensou em Coimbra, escreveu, responderam-lhe. Está aberto a outras sugestões. Precisa de achar uma bolsa.
Com tudo isto, atravessando o trânsito de Santa Cruz, ora urbana, ora rural, chegamos ao quartel que era a sede da fazenda. Aqui estiveram os jesuítas do século XVI ao século XVIII, depois a decadência, depois o monarca. Está restaurado, reluz em branco e turquesa. Ao mesmo tempo, não será estranho que se ouçam tiros.
“Onde o poder público não toma conta, vem o tráfico ou a milícia. E como aqui é muito afastado do centro as pessoas não ficam sabendo dos tiroteios, do armamento pesado. Rola uma certa impunidade.” Não é como quando algo acontece na Rocinha. Estamos a duas horas da Zona Sul carioca.
Mas não é preciso sair daqui para estar ligado. “Televisão, Internet, isso fez com que a cidade diminuísse. O meio de transporte ainda é caótico mas melhorou muito, o comércio expandiu com a vinda dos shoppings. Hoje você vai encontrar aqui tudo o que quiser consumir.”
Mas livros, tem de procurar bastante. Um quiosque no shopping, uma biblioteca que daqui a pouco vamos ver, nenhuma livraria para quase 200 mil pessoas: eis Santa Cruz.
“Quando decidi adaptar Machado de Assis foi para combater isso, que o brasileiro não lê. Cara, o Machado devia ser o herói da periferia. Nasceu no Morro do Livramento, ainda pegou o Brasil escravocrata, era mulato, gago, só cursou até à quarta série e tinha epilepsia. Mas aprendeu outras línguas, fundou a Academia Brasileira de Letras e se tornou o maior escritor da literatura brasileira. Era um cara que tinha tudo para dar errado. Pode ter uma importância simbólica aqui. Porque aqui me dizem: ‘Você tem é de arrumar um emprego.’ Ou então: ‘Um dia você vai chegar na Globo.’ Como o Leonardo da Vinci diz, a gente só gosta do que conhece.” Tem que dar a conhecer, então.
Estamos diante do belo ex-matadouro de Santa Cruz, palacete de pedra restaurado que agora é o Ecomuseu, incluindo a tal biblioteca pública. Ao lado, a prefeitura do Rio instalou uma equipamento olímpico. “Meus pais fazem hidroginástica aqui. Isso mudou a vida deles. E trazem meu sobrinho para fazer aula de basquete, de futebol.”
Nova classe média. Enquanto isso um cavalo pasta nas ervas, em frente. Velha classe rural.
No Ecomuseu aparece Bruno Cruz, um mulato da região que trabalha como voluntário. “Foi desactivada a lei que dizia que só funcionários públicos podiam trabalhar aqui. Agora são pessoas da comunidade e voluntários.” Nas traseiras há uma sala com alto pé direito, cadeiras e um pequeno palco em cima do qual Alexandre fez uma apresentação da peça. “As 12 famílias que tínhamos visitado vieram para cá com os convidados, tivemos mais de 200 pessoas.” Nunca tinham entrado no palacete, tal como nunca tinham ido ao teatro. Mas entram no Facebook, onde os agendamentos foram lançados desde o começo. “‘Você quer teatro na sua casa?’ Em três dias já estava lotado. As pessoas convidavam os vizinhos para ir lá em casa no teatro.”
Um orgulho.
Não que tudo seja simples. “Os traficantes que estão saindo das comunidades pacificadas [na Zona Sul ou mais perto de lá] estão vindo directamente para cá, para uma comunidade chamada Rolas, onde praticamente todos os dias há tiroteio. Fomos fazer uma apresentação lá e passámos por três barreiras, uns troncos, um cara com um rádio: ‘São os artistas. Libera aí.’ E a senhora [que recebia a peça] morava do lado da boca de fumo [ponto de venda de droga]. Os caras com uma trouxa de dinheiro e outra de maconha, com metralhadora. A gente ficou meio tenso. Depois cheguei na casa, todo mundo na cerveja e a gente trazendo café. A dona da casa é empregada doméstica em Copacabana, volta duas vezes por semana para casa, não dá para voltar todo o dia. Deixa comida preparada para a semana toda. Os filhos crescem sozinhos e tem um que toca Bach, Villa-Lobos, lê partitura. A patroa dela vai muito ao teatro e comentou: ‘Como assim, vai ter teatro na sua casa? Está mais chique do que eu.’ E no fim tinha gente chorando porque nunca tinha visto teatro na vida.”
Durante anos, o pouco teatro que havia no subúrbio era uma cópia pobre da Zona Sul. Não é isso que interessa a Alexandre. “Não acho que deva estar fechado para a Zona Sul, quero dialogar com a cidade, circular. Quero muito estar em cartaz na Zona Sul, mas também aqui na casa de uma empregada doméstica. Ali me senti homenageando Brecht, [Augusto] Boal, Paulo Freire, [Leonardo] Boff. A questão não é que peça a gente vai fazer, mas sim o que é a gente vai discutir agora. Um jeito de estar na vida, na cidade.”
De tão longe, Santa Cruz é o lugar “onde o vento faz a curva”, diz. “Sempre escutei essa frase: ‘Nossa, como você mora longe.’ Mas eu estou morando longe de onde? Centro é onde você está.” E descobrir que aqui existe o último hangar de zepellin do mundo, ou a ponte dos jesuítas, ou o quartel onde morou a família real pode dar uma volta na cabeça. “Isso me fez ter uma história. Perceber que o bairro dormitório tinha uma história por trás. E as pessoas que eu amava estavam aqui.”
Tudo há-de estar no livro de contos que Alexandre tem em mãos, “Depois da Curva do Vento”, incluindo o seu bairro, Cesarão, a caminho do qual agora vamos, onde as ruas não tinham nome. “Isso me fez falta. Eu morava na rua 50, enquanto o outro [da Zona Sul] morava em Nossa Senhora de Copacabana. Era um não-pertencimento, esse sem-nome.”
O país está em campanha para as municipais. Cartazes de Marcelo Freixo, o candidato da esquerda apoiado por artistas como Caetano e Chico, e de Eduardo Paes, o actual prefeito que deverá ser reeleito. “A Zona Oeste é o maior curral eleitoral do Rio. Quem ganha aqui acaba eleito e o Eduardo Paes é muito forte aqui. Torço muito pelo Freixo, mas acho que vai ser difícil.”
Atravessamos o Rolas, o tal bairro onde os traficantes se estão a concentrar. Cesarão vem a seguir, casas térreas, igrejas evangélicas, carros de janela aberta a bombar funk em volta da pracinha, mototáxis. “Já vi a morte aqui e já vi festa de dia da criança aqui.”
O seu vizinho da frente, amigão até hoje, era o Marcus.
Marcus chega com um DVD, um livro e uma revista ao Bar do Mineiro, o melhor lugar do Rio para comer carne seca com abóbora. Vem da Lapa, onde tem o seu escritório, mora aqui, em Santa Teresa. Dois velhos pedaços da boémia carioca. Marcus Vinicius Faustini, 40 anos, um daqueles hiperactivos que não cabe no quadrado. Profissão? Actor, encenador, realizador, programador, escritor.
O DVD é “Carnaval, Bexiga, Funk e Sombrinha”, documentário assinado por ele. O livro é “Guia Afectivo da Periferia”, que o antropólogo Luiz Eduardo Soares descreve no prefácio como sendo tudo isto: “Romance de formação; etnografia urbana; história social do subúrbio carioca; flagrantes idiossincráticos da Baixada Fluminense; memórias; confissões; biografia precoce; fragmentos de um discurso amoroso sobre o Rio de Janeiro…” Por aí fora. A revista é sobre o projecto “Agência de Redes para a Juventude”, em seis favelas pacificadas do Rio de Janeiro, ou seja, com a presença de UPP’s (Unidade de Polícia Pacificadora).
Quem não conhece o Bar do Mineiro pense numa tasca lisboeta, azulejos, mesas de pedra gasta, bruá. E quando nos sentamos, com um copo de cada lado, Rio e futuro vão de enxurrada, na propulsão de Marcus, esse carioca como tantos filho de nordestinos, “um bando de pobres” vindos do sertão, avó com 18 filhos, analfabeta.
“Fui criado visitando essa família numerosa.” Da Cidade de Deus a Jacarezinho, da Baixada Fluminense a Santa Cruz, onde tios e primos estavam espalhados. “Cresci com minha mãe circulando a cidade, de ônibus, de trem. Não existe ‘Cidade Partida’, isso é um conceito de classe média que foi importante para unir a classe média no espanto de não existirem direitos [nos lugares pobres]. Os pobres sempre circularam. Foi uma educação para a circulação.”
Ele mesmo foi “punk, funkeiro, da Teologia da Libertação, do movimento estudantil”. E ao longo de tudo isso foi “encontrando a classe média”, a velha classe média que na verdade é média alta. “Tinha uma época que só tinha restaurante japonês no Leblon, onde a classe média fingia que vivia em Nova Iorque. Só que dentro desse restaurante havia um ‘sushiman’ que era da Rocinha mas não era narrado na história. E o que está acontecendo agora é que já não dá mais para ele ser invisível.”
Verdade que pobre também tinha medo de descer do morro, passar entre os ricos. “Minha mãe dizia: ‘Passe de cabeça baixa.’ Mas ela me deu esse encorajamento de circulação.” Que na cabeça de Marcos foi dar nisto: “Jovem da favela não é carente, é potente. Ele só está fora das redes e repertórios da cidade. Ainda está. Mas algumas já se abriram, como a do audiovisual.”
O que está em disputa é o país. “O Brasil pode ir para qualquer lugar. Mas nunca esteve tão em disputa e isso é bom. A maior invenção do Brasil é a cultura popular. O Brasil é desejante de cultura. Não é a toa que a mãe bota ao filho o nome John Lennon da Silva.”
O ponto é que quem filmava o pobre era a classe média, quem escrevia era a classe média. “O pobre já foi o homem tosco. Estou falando de Guimarães Rosa, onde a subjectividade se confunde com a terra. A classe média é que sempre representou o pobre. Pobre é invenção, pobreza é condição socio-económica.” Depois do “homem tosco”, pobre “foi o homem puro que veio para a cidade grande, que se deslumbrou, depois o bandido, depois o operário que temos que conquistar para fazer a revolução”. Em suma: “A classe média tem um fetiche em dizer quem é o pobre. O pobre ficou fora dos meios de produção e então inventou meios de cultura, de operar a linguagem, virou o ‘sushiman’ que fala engraçado. E a classe média ficou confusa: ‘Pô, eu aqui te representando e tu fica inventando coisas sem parar.’”
Vieram os anos 90, levando cultura para a favela. “Aí os jovens disseram: ‘Não queremos um encontro jesuítico, hierarquizado, em que você me diz o que é cultura. Queremos um encontro em que a gente encontre algo novo.’ Queriam quebrar os pobres como produto, comodity da indústria cultural.”
É este o princípio do projecto Redes. “A gente acaba com a ideia de oficina. O jovem chega com uma ideia, nós desenvolvemos e damos os recursos. Então, ele não vem ser aluno, vem ser criador. Ele é potente.”
No documentário e no livro, Marcus quis mostrar que “a memória também é popular”, não pertence só à elite. “Pobre também tem memória. Os judeus construíram toda a sua política pública com a memória. A arte inventa formas de estar na vida.”
Então, dos anos 90 para cá, diz, pobre deixou de querer ser representado pela “alvorada lá no morro, que beleza”, dos belos sambas de Cartola. “Não adianta cantar as belezas da favela. Tem que ser orgânico, ter acção para interferir e disputar o imaginário, os modos de produção, inventar escola de cinema, de teatro. Aí esses grupos começam a escrever livros, a produzir filmes, e acontece o governo do Lula que cria a inclusão económica e subjectiva do Bolsa Família, que leva o pobre a consumir além da luta pela sobrevivência. Começa a criar-se o mito da classe C, que os intelectuais chamam assim para controlar no campo do consumo. Uma forma de controlar é dizer: ‘Essa classe C só consome.’ Mas quem está fazendo banco comunitário? Cultura no território? Moeda alternativa de troca? Pessoas que todo o mundo chama de classe C. Então classe C é a vanguarda, mas não da representação. De inventar meios de produção. Menino da [velha] classe média faz manifesto. Menino de favela faz projecto porque quer inventar vida.”
É aqui que entra a novela. “‘Avenida Brasil’ é o momento em que os meios de produção já não podem representar o pobre subalterno, miserável. Então a novela tem um atravessamento, tem uma personagem [do subúrbio] que lê Kafka, os caras viajam. A novela não representa a classe C. É um atravessamento do país. É a Globo tentando dar conta de tudo o que está acontecendo no Brasil. É um desespero.” Enfim cortando com o maniqueísmo. “Se abriu para vários atravessamentos, representa o país, o momento em que a favela se mistura com a vanguarda. Tem celular que toca no meio de uma cena dramática, porque todo o mundo no Brasil agora tem celular. É a TV brasileira correndo atrás desse país.”
E tem muito para correr: “Radicalizar o processo de mistura, de circulação, de mobilidade: transformar a circulação em mobilidade. Todo o mundo tem que ter direito às suas máquinas expressivas. O Brasil ainda não experimentou 30 por cento da sua cultura por causa da herança escravocrata.”
Chapéu. Ou em gíria carioca: demorou.
(Público, 12-8-2012)
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http://blogues.publico.pt/atlantico-sul/2012/08/13/um-novo-brasil/
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